:: Narciso e sua corte ::

Há uma meia hora atrás estava lendo a crônica de Gilberto Dimenstein na Folha. Um trecho me chamou a atenção e me inspirou a escrever esse post:

Morei 13 anos em Brasília, onde respirava os bastidores do poder. Até que me cansei, por achar que estava ficando intoxicado. Vi como, frequentemente, os governantes também se intoxicavam e ficavam mentalmente doentes, ao transformarem a realidade em um espelho no qual queriam ser ver lindamente refletidos, sempre estimulados pelos assessores. É apenas a velha doença de Narciso, o personagem mitológico, que se esvai e se consome, seduzido pela própria imagem nas águas.

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Ele gostava de estudar. Afinal de contas, era professor. E gostava de ensinar!!! Como era bom, todos aqueles alunos encantados com seu jeito "maluquinho" de ser. Como era estimulante ter todas aquelas carinhas ávidas de saber, prestando atenção, se deleitando com o show que ele dava.

Apesar de ter o ego estimulado, o dinheiro não dava. Ele queria mais, sempre mais, mas seu dinheiro era sempre pouco. Até o dia em que apareceu a chance de ouro: uns amigos convidaram para que ele entrasse em uma empresa.

"O cargo não importa", dizia ele. O importante é que ele agora fazia parte do mundo corporativo. E jurava de pés juntos que não ia mudar! Seu mantra predileto era "eu sou só um professor que veio parar em uma empresa". Como se isso o isentasse da sedução que a corporação exercia a cada momento sobre ele.

Notebook da empresa, celular, carro, cartão corporativo... eram tantas coisas! Mas ele continuava batendo na mesma tecla: "tudo é impermanente. Só estamos de passagem por aqui". E não percebia que a arrogância, que já era naturalmente sua, já tinha subido dois tons na escala.

E as mulheres?? Ah, as mulheres... quanta admiração! Ele, que era tímido, que sempre se sentiu inferiorizado, feio e desajeitado, agora era cercado de mulheres lindas, inteligentes e que - pasmem! - se derretiam com cada cantada frouxa, se riam com cada piada ridícula, se maravilhavam com a inteligência superior dele.

Até que um dia a ficha caiu. A realidade da impermanência bateu à sua porta. Na verdade, foi mais como uma colisão de frente com um caminhão. E a partir desse dia, ele passou a viver assombrado. Externamente, continuava o mesmo: parecia superdescolado, engraçado, inovador... Mas, à noite, quando estava sozinho com seu travesseiro, os fantasmas o assombravam. E se de repente a empresa percebesse que ele não era tudo isso (e ele sabia que não era)?

Como proporcionar à família as comodidades a que agora elas tinham se acostumado? As viagens, os gadgets das filhas, os pequenos luxos da esposa... pra todos ele batia no peito e jurava que voltaria sossegado à sala de aula. Mas só de pensar na possibilidade já se sentia menos inteligente, menos descolado, menos homem.

Passou a se cercar de pessoas vazias. Espelhos caricatos que apenas refletiam as qualidades que ele desejava desesperadamente acreditar que tinha. Papagaios que repetiam seu discurso aos quatro ventos. Aduladores que o bajulavam e seguiam cada passo das diretrizes dele, como se suas vidas dependessem disso. E o resto da corte, aqueles que não estavam tão próximos, esses para ele eram menos que ninguém. Nem se lembrava de que eram pessoas, que tinham sentimentos e anseios, contanto que continuassem a servi-lo bem.

Tal qual a Rainha de Copas, se qualquer um deles saísse do esquadro, mandava, sem dó nem piedade: "Cortem-lhe a cabeça!". Como se o fato de se afastar de pessoas mais competentes, mais esforçadas, mais honestas que ele fosse torná-lo alguma dessas coisas. A cada cabeça que caía, cada pessoa que ia embora se transformava em mais um fantasma.

Passou a ser assombrado de dia também. Agora, nem mais aqueles bajuladores lhe serviam mais. Cada rosto que olhava se transformava em uma máscara assustadora, que o apavorava. Para onde quer que olhasse, só via fantasmas, monstros, aberrações distorcidas de sua mente cada vez mais paranoica. Todos que se aproximavam eram chutados para longe. Sentia-se como um bicho acuado, ofegante, enlouquecido.

Uma noite conseguiu dormir, de pura exaustão. Sonhou que era professor, que estava em sala de aula, feliz, completo, até se virar e se deparar com uma classe de monstros, todos prontos a atacá-lo. Acordou ofegante. Olhou no relógio, viu que estava na hora de levantar.

Se arrumou, pegou a mochila e foi para a empresa. Mais um dia para enfrentar seus fantasmas e sonhar, trancado em sua sala, isolado em sua solidão, ilhado em sua loucura, que era um professor novamente.

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