Só por uma noite

Um raio de sol em cheio no rosto a acordou.

Antes de abrir os olhos, ela se deu conta do tamanho de sua ressaca. A dor de cabeça era imensa, como se milhares de cacos de vidro estivessem soltos em seu crânio. Virou de lado na cama e tentou se acomodar para dormir novamente.

Algo errado despertou sua atenção: não sabia aonde estava. Subitamente, faltou coragem para abrir os olhos: ela esticou o braço e percebeu que estava em uma cama de casal. Sozinha. Ouviu barulho de água. De um chuveiro.

Tentou se lembrar da noite anterior. Uma festa de arromba da empresa. Precedida por um happy hour com a galera. Finalizada com... com quem, mesmo? Por mais que se esforçasse, ela não conseguia se lembrar. No happy hour, ela conversou bastante com aquele bonitinho do Marketing. Mas ainda bem que era só um happy hour, porque ele era chato pra dedéu.

Aos poucos, a memória da festa foi retornando. Ela se lembrou da bebida, que corria farta, e, somada àquelas que tinham rolado no bar, a deixaram superanimada e falante. Conversou com gente que mal cumprimentava de manhã no elevador, bateu papo com diretores, rachou de rir com o pessoal da Contabilidade (e ela que nem sabia que eles eram bem humorados). E, pra quem condenou, respondeu com uma risada: "Ué, mas não é festa de confraternização? Tô confraternizando!".

Aí a banda começou a tocar. Levada pelo embalo da música, se deu conta estava na beirada do palco. E como o bateirista era gatinho... que graça! Sua performance de dança melhorou 200%. Já nem lembrava mais dos amigos da empresa, só queria se mostrar e aparecer bastante pra ele, que não era bobo nem nada e logo percebeu seus olhares maliciosos.

Descobriu os bastidores do salão na hora do intervalo da banda. Que delicioso era aquele menino! Foram 10 minutos de muitos amassos e tesão. A expectativa de chegar alguém e pegar os dois no flagra só deixou tudo mais gostoso. Ela ficou se sentindo uma devassa, uma libertina, querendo uma ficada de uma noite, louca pra aproveitar mais daquele corpinho.

Bêbada, nem pensou se era perigoso ou não sair com ele de lá. Quando o show acabou, passou a mão na bolsa, nas chaves do carro - e no bateirista - e se mandou. Mas, por mais que espremesse a memória, não conseguia se lembrar, de maneira nenhuma, se foi para o motel, para sua casa ou para a casa dele.

Criou coragem e entreabriu os olhos. Nos pés da cama, viu seu ursinho de pelúcia favorito. Deu um pulo, esquecida momentaneamente da ressaca. A dor de cabeça, fortíssima, a fez deitar novamente.

Encarou o teto. "Meu Deus. Tô em casa. Eu trouxe um desconhecido pro meu apartamento?"

Antes de decidir o que fazer, a porta do banheiro abriu. E o bateirista aparece enrolado na sua toalha cor-de-rosa-de-rendinhas-bordada-pela-vovó-quando-vim-morar-sozinha. Sorridente. Pingando água no chão limpinho. Dizendo "bom dia, coração!". Mas que bom humor é esse, logo pela manhã de um sábado?

No meio de todo seu mau humor, ela percebeu que não se lembrava do nome dele. "É o fim da picada... e agora?". O mocinho fez questão de dizer pra ela o quanto a noite foi bacana, o quanto a achou gostosa, que ficou encantado com a malícia dela na cama e que nunca tinha experimentado ~aquela~ posição (e ela duvidou sinceramente de que tivesse conseguido tal performance).

Enquanto ele matraqueava, ela se sentou na cama, a cabeça latejando e funcionando furiosamente, tentando encontrar uma saída honesta para aquela saia justa. Ela sempre tinha condenado as amigas que diziam que se esqueciam de tudo quando bebiam - achava que a bebida era só uma desculpa para aprontar.

Totalmente sem inibição, ele apanhou suas roupas espalhadas pelo quarto, jogou a toalha molhada (ah, se vovó visse essa cena) em cima da poltrona e se vestiu. Ali, na sua frente, como se fossem um casal, daqueles de verdade, que dormem e acordam juntos todos os dias. Sem parar de falar, com uma voz doce e macia, ele pulou as roupas dela, amontoadas na porta do quarto, e foi para a cozinha, perguntando se "você não se incomoda se eu fuçar um pouco, né, meu bem?"

Assim, como se fossem um casal. Desses que cozinham e fazem as refeições juntos.

Enquanto o ouvia mexer na cozinha, tomou um banho frio e rápido. A água gelada trouxe o nome dele à mente. Ufa. Pelo menos não iria passar vergonha. Vestiu um roupão atoalhado - azul-calcinha e broxante - na esperança de desestimular o rapaz. Vã ilusão. Na cozinha, um kit ressaca a esperava: suco de laranja, antiácido, dois analgésicos e um ovo cozido com torradas. Tudo bem arrumadinho. Assim, como se ele estivesse mesmo preocupado com ela.

Perguntou sobre seu trabalho. Sobre sua família. Se gostava ou não de chocolate. Se curtia cinema. Dos seus gostos musicais. Assim, como quem se interessasse de verdade. E, quando ela viu, já eram duas horas de café da manhã e a ressaca e o mau humor tinham ido embora. O nome dele já não saía de sua boca e uma vontade de saber tudo daquele cara crescia em seu peito.

Assim, como se ela fosse uma adolescente romântica. Justo ela, uma mulher moderna, independente, solteira, baladeira. Das que ficam com um cara só por uma noite sem peso na consciência. Bom, o plano era esse...

Bem quando ela estava encantada, já pensando em como convidá-lo para o almoço - e quem sabe o jantar - de sábado, o moço decidiu ir embora. Assim, com a leveza de um amigo que vem sempre, sem convite, pra uma cerveja na sua casa. O peito apertou, a boca secou, deu vontade de dizer "fica". Deu vontade de dizer "curti você, adorei ter passado a noite com você, quero mais".

Mas ela não disse. Pendurou um sorriso no rosto e, muito civilizadamente, agradeceu-lhe pelo café, pela conversa e pela noite. Até mandou o famoso "Precisamos repetir hein? Brincadeira!". Se estivesse na internet, acrescentaria um "rsrs" ou um emoticon pra quebrar a seriedade. Só a coisa era ali, ao vivo, e já que ele não disse nada, ela também se faria de desentendida.

Como se ela não estivesse encantada. Como se seu coração já não estivesse aberto para ele. Ganhou um abraço e um "você se lembra que me deu seu telefone, né, eu te ligo". Como se ela acreditasse nesse tipo de papo.

Nos dias que se seguiram, fugiu das amigas que a viram deixar a festa com o bateirista. Fugiu da mãe, que cansou de ligar, convidando-a para o almoço de domingo. Fugiu da maratona de filmes românticos - programada pela TV a cabo de propósito, só pode! Fugiu de se olhar no espelho, porque sabia que ia se xingar. Ficou se achando burra, ingênua, romântica. Mas nem essa culpa toda evitou que, a cada cinco minutos, ela conferisse o celular.

Vai que tá sem sinal.
Vai que a bateria acabou.
Vai que deixei no silencioso.
Vai que ele mandou um torpedo.
Vai que ele me adicionou no WhatsApp.

Mas o silêncio foi ensurdecedor. E significativo - muito mais do que a noite juntos, pelo jeito. As consultas ao celular foram se espaçando ao ponto de, uma semana depois, ela já nem se lembrar mais de procurar pelo telefone. Já tinha perdido a esperança - mas o orgulho, ferido, doía, e sua consciência exigia que ela nunca mais fizesse uma loucura dessas.

Uma semana depois da festa, os boatos sobre ela já tinham perdido a graça e seu humor já tinha se recuperado. Um pouco, mas não o suficiente para topar um barzinho com as amigas depois do expediente. Pelo sétimo dia - e pela infinita vez - se perguntou o que tinha feito de errado. Foi a ressaca, o roupão azul-calcinha ou a bandeira que deu na mesa do café? Será que os homens AINDA fogem de mulheres que vão pra cama no primeiro encontro? Em pleno século XXI?

Dormiu no sofá, acompanhada de meia garrafa de vinho. Assim, como se ele tivesse sido um caso de uma noite. Como se não tivesse sido nada. E no sábado, se desse tudo certo, ela só acordaria com uma ressaca monstro no lugar daquele vazio em seu peito.

Acordou às duas da manhã com o celular tocando. Não reconheceu o número e, pensando em todas as desgraças possíveis, ouviu o que já não esperava mais: "Oi, coração! Te acordei?". Assim, como quem tivesse saído há cinco minutos de sua casa. Como se não fosse de madrugada. Como se eles se falassem sempre.

Como se ele não soubesse que ela estava esperando por ele, bem naquele toque, o vazio do seu peito desapareceu.

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