Em três atos - II

Esse texto é a continuação do conto publicado AQUI.

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A moça artesã estranhou quando sua oficina esvaziou dos amigos que a frequentavam tão assiduamente. Eles começaram a rarear e, ao cabo de alguns dias, sumiram quase que completamente de seus cuidados.

Uma amiga lhe contou que havia uma companhia de teatro mambembe no vilarejo onde moravam. O grupo promovia pequenas apresentações, sem cenário, no meio da rua mesmo, que estimulavam situações cômicas e o riso como forma de catarse para as mais variadas dores.

Ela deduziu que a falta de movimento se devia, então, à cura que o grupo de teatro promovia. Não se sentiu rejeitada; aproveitou os momentos de quietude e de pouco trabalho para se recolher e já preparar seus presentes mágicos para serem distribuídos. Sabia que as mazelas humanas não deixam de nos atormentar e que, mais dia, menos dia, os amigos voltariam a procurá-la em busca de paliativos para suas dores.

Uma noite, tarde já, ela moldava pequenos amuletos em forma de borboletas para levar para crianças doentes no hospital. Utilizava uma argila famosa por suas propriedades curativas e tintas preparadas com pigmentos que ela mesma criava murmurando encantamentos. Totalmente absorta em sua tarefa, não ouviu a porta da frente da oficina - sempre destrancada, enquanto ela ali permanecesse - se abrir. Assustou-se com um desconhecido parado ali.

"Escuro" era um excelente adjetivo para aquele rapaz. Bronzeado de sol, daqueles que passavam o dia ao ar livre, de cabelos negros revoltos e cacheados, olhos castanhos de cílios longos, o desconhecido tinha um ar meio desconfortável enquanto coçava a barba e hesitava na soleira de sua porta.

Solícita, ela convidou-o a entrar e ofereceu-lhe um refresco. Ele se apresentou como um dos artistas do grupo mambembe de teatro; contou-lhe que a companhia já viajava há tempos por aquela região. Um pouco mais jovem que ela, trazia o mundo em seu olhar profundo, fruto das viagens constantes e da convivência com pessoas dos mais diferentes tipos. Tatuado, tinha um sorriso franco e encantador, daqueles acompanhado de covinhas; "pena que aparece tão raramente", pensou a moça.

Ao longo daquela conversa, ela notou como ele se sentia tímido de lhe contar o problema que o fizera procurá-la. Disse que tinha ouvido de vários moradores da cidade quanto bem ela lhes fizera. A jarra de refresco acabou, o pote de biscoitos se esvaziou, e ele continuava sem lhe contar o real motivo de estar ali. Rodeou, rodeou, e terminou por se despedir sem se abrir com a moça.

Enquanto limpava suas ferramentas e encerrava o trabalho do dia, ela se pegou pensando naquele moço. De expressão tão penetrante, ele desviou os olhos dos dela em todas as vezes que a moça o pressionou para entender seu problema. Sua sensibilidade lhe dizia que ali residia um coração necessitado de compreensão e carinho.

Decidiu colocar sua praticidade de lado, dando-lhe um tempo para que ele se sentisse mais à vontade com ela e conseguisse vencer aquela barreira. Sentiu-se intrigada por aquele homem tão misterioso e bonito, à sua maneira: era como se ele, já naquele primeiro encontro, pudesse ler o que lhe ia na alma com um simples olhar. Um grande desconforto lhe incomodou profundamente; como ele conseguira transpor com tanta facilidade aquele muro que ela construíra para manter os outros afastados?

Curiosa, informou-se sobre as datas das apresentações de seu grupo e foi assistir a uma. Encantou-se com a desenvoltura do rapaz e de seus amigos na história: riu, se emocionou e aplaudiu. Ele, delicadamente, apresentou-a a todos seus amigos ao final do espetáculo.

A moça artesã era uma pessoa delicada e gentil e, por isso, em pouco tempo quase todos os integrantes do grupo mambembe frequentavam sua oficina. Muitos, apenas por sua amizade e sorriso; outros, em busca de cura.

Um caso particularmente espinhoso foi o de um casal que não assumia a relação, apesar da óbvia paixão que os unia. Além do desejo infinito de uni-los, a moça se afeiçoou enormemente a eles e queria, mais que tudo, que se acertassem. Eles combinavam tanto... todos viam o amor com que um olhava o outro, mas os dois eram teimosos e preferiam brincar de cabo de guerra a ceder ao sentimento. Foram dias e dias de choro, bombons, canecas de chocolate quente e muitas, muitas conversas com eles. Para sua imensa alegria, o casal decidiu se dar uma chance e ser felizes. E foram.

Mas ela não conseguia se aproximar do moço. Os olhos dele continuavam a fugir dos dela e, em todas as vezes que ela o procurava, querendo ajudá-lo, ele fugia. Em algumas vezes, chegou até a ser grosseiro com ela. A moça oscilava entre as tentativas de compreensão daquela alma atormentada e a irritação com as inúmeras maneiras que ele encontrava de fugir dela - somente para, na sequência, tornar a procurá-la.

Em uma noite de tempestade, em que ela estava exasperada com ele, o moço lhe procurou. Angustiado, com os olhos em brasa, ele abriu o coração para ela. Contou-lhe que tinha sido magoado por uma namorada e que não conseguia mais acreditar no ser humano. Que seu coração ansiava por alguém, mas que até aquele momento o medo era maior que a vontade de ser amado. Que o contato com ela lhe encheu os dias de luz, e queria mais que tudo estar junto com ela. Por isso, estava disposto a enfrentar, de novo, a possibilidade de se machucar.

Ali, naquela confissão, abriu-se uma rachadura no muro da moça. Porque ela também precisava estar com alguém. E, até aquela noite, ela não tinha percebido o quanto ansiava por ele.

Passaram a noite juntos. Contaram-se infinitos segredos, Descobriram-se mutuamente. Ela se desnudou para ele, de corpo e de alma. Ele conseguiu suplantar seu medo e se entregar. A entrega dele - sem reservas, sem medidas - deu coragem à moça para derrubar de vez as proteções e encarar novamente um relacionamento de peito aberto.

No início, tudo foram flores. Ele foi paciente com ela e tentou, à sua maneira, ser romântico e amável. Com ele, ela descobriu que havia muito mais no amor do que aquela delicadeza que seu primeiro amado lhe dava. Havia carinho e risos, claro, mas também havia carne, suor, tardes ociosas abraçados, descobrindo um ao outro. Ela se perdia no poço escuro dos olhos dele, enquanto ele se encantava com a risada cristalina e doce da moça.

Foram dias de indolência e paixão, mas seus ideais eram muito diferentes. Se ela era magia, ele era pura realidade. Enquanto ela acreditava no impalpável, ele era material, seco e ácido. Se ele fosse poesia, seria daquelas concretas, enquanto ela seria prosa: um conto de fadas. As diferenças eram enormes, gritantes e, a cada dia, mais intransponíveis.

Ele não se conformava com a dedicação dela ao estudo do invisível. Para ele, tudo aquilo não passava de "crendices", de bobagens. Ele tinha sempre um meio sorriso no rosto em todas as vezes que ela tentou lhe explicar sobre seu ofício. Para ela, aquela condescendência era uma afronta: ao seu trabalho, ao que lhe definia como mulher e, principalmente, às coisas em que ela acreditava.

Do seu lado, ela tentava desesperadamente influenciar um pouco o moço para que ele ficasse um pouco menos no concreto. E, para ele, aquilo também era uma ofensa. Ele era um homem que acreditava em suas ideias, no que podia tocar, ver e sentir com a ponta dos dedos. Faltava-lhe uma pitada de fé, não no sentido religioso, mas como crença em algo não material.

A loucura da paixão dos primeiros tempos se esvaneceu. Em poucas semanas, tudo o que sobrou foram críticas, das mais secas e irônicas, por parte dele, e uma mágoa enorme, por parte dela. Por diversas vezes, se pegou enxugando as lágrimas apressadamente, enquanto alguém entrava na oficina, procurando-a.

Cansada de tentar, esgotada com tantas brigas, ela tomou a decisão por ele, pois sabia que o moço jamais teria coragem de abandoná-la, não depois de saber os detalhes de sua primeira separação. Quando recebeu a notícia de que a companhia de teatro se preparava para deixar o vilarejo, delicadamente preparou a mala de seu amado. Em sua inseparável mochila, na qual ele carregava livros e objetos que lhe eram caros, prendeu um amuleto com um filtro do amor, que o ajudaria a superar o afeto que sentia por ela. Ele guardaria apenas a recordação de uma amiga muito querida.

Confeccionou-lhe também uma joia, no formato de escapulário. Prendeu-a no pescoço dele enquanto lhe explicava que não era mais possível que se relacionassem, embora ela o amasse muito. E que o escapulário era o símbolo da esperança dela de que, um dia, ele pudesse abrir seu coração e também crer no que não via.

Após despedir-se de seus amigos da companhia de teatro, a moça artesã encontrou-se uma última vez com seu amor. Deu-lhe um abraço apertado, um longo beijo nos lábios, enxugou-lhe as lágrimas, que se misturavam com as suas, e afagou-lhe os cabelos cacheados que tanto a encantavam. Olhou naqueles olhos escuros, disse adeus e fechou a porta antes que o moço virasse as costas para partir, pois sentia que seu coração não suportaria outro rompimento.

Mais uma vez, se isolou. Mais uma vez, se enclausurou na tristeza. E, desta vez, não tinha forças nem para erguer um muro em torno de si. Acreditou novamente que estava sozinha e que assim permaneceria.

A moça artesã não sabia do poder da música e de como um homem sensível, que esteve ao seu lado o tempo todo, faria diferença em sua vida.

** continua aqui **

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