Em três atos - III - o ato final

Esse é o ato final dos contos publicados aqui e aqui.


***

Fala o moço sensível:

"Sou amigo da moça artesã há um tempo já.

Acompanhei de longe quando ela criou e se apaixonou pelo boneco. Não éramos amigos, na época, mas já a conhecia e vi seu sofrimento durante a separação. Nesse meio tempo, nos aproximamos aos poucos.

Me desculpem. Não me apresentei. 

Gostaria de dizer que sou o estereótipo do príncipe encantado, mas não sou. Eu me considero um homem seco e pragmático. Quer dizer, eu não era assim. Mas fui ficando... e conheci a moça artesã.

Ela é divertida, inteligente, amorosa. E insegura. Não tem ideia do quanto cativa os que estão à sua volta - a mim, pelo menos, foi de primeira. Ficamos amigos e sofri de vê-la tão mal por causa do rompimento."

Fala a moça artesã:

"Ele é um amigo tão querido. Gosto tanto dele... tivemos uma empatia imediata e mútua quando nos conhecemos, mas nos aproximamos aos poucos, devagar. Fomos nos acostumando um ao outro e, quando vi, ele já era uma pessoa fundamental no meu convívio.

Já cansei de dizer a ele que de seco, ele não tem nada. Ele é uma das pessoas mais sensíveis que conheço. Talvez ele confunda delicadeza com sensibilidade - e, realmente, delicado ele não é. Mas tem, sim, uma doçura infinita guardada dentro do peito. Às vezes, ela é tanta, que transborda e transparece pelos lindos olhos dele. Pena que ele é tão rápido em escondê-la.

Ele estava presente nos dois rompimentos que tive. No primeiro, estávamos nos conhecendo, ainda. No segundo... (suspira, com o olhar perdido)"

***

Quando a companhia de teatro se foi, a moça artesã estava tão arrasada que não tinha sequer forças para sair da cama. Ela, que sempre foi uma pessoa solar, não queria abrir a janela, não queria a luz do dia iluminando sua casa. Não tinha vontade de comer, de cuidar de seus afazeres, de regar suas plantas. Não queria abrir os olhos e encarar a vida.

Aquela separação acabou com sua esperança no amor. E quase arrasaria com sua vontade de viver, não fosse aquele amigo tão querido.

A moça artesã vivia dizendo que ele, à sua maneira, também vivia num mundo meio mágico. Era músico, e, na opinião da moça artesã, a música era a forma mais pura e encantadora de mágica que existia. 

Para ela, ouvir música era essencial. Era uma combinação de poesia e de boas vibrações, e ela não conseguia imaginar nenhum momento de trabalho, de felicidade (e até de tristeza) em que não estivesse acompanhada por música.

Naqueles dias de insuportável depressão, a casa da moça artesã ficou escura. E muito, muito silenciosa. 

Vários amigos tentaram tirar a moça daquele estado tão ruim. Tentaram levar doces e presentes, fizeram rodízio para manter sua casa organizada, para regar suas plantas, lhe procuraram com pequenos problemas, tentando despertar seu lado maternal. Nada surtiu efeito. A moça continuava deitada em sua cama, de olhar perdido, sem apetite nem vontade de retomar a vida.

A questão não era o afeto que sentia pelo moço dos cabelos cacheados. Ela entendeu que não seria possível que se relacionassem, já que eram tão diferentes. Mas o rompimento, para ela, era a constatação de que o amor não lhe tinha sido reservado naquela existência. De que sua vida tinha de ser voltada para o cuidado com o próximo, mas que ela mesma não teria direito a receber carinho, como se preocupava com os amigos.

O moço sensível não aguentava mais passar pela casa da moça artesã e vê-la toda fechada. As flores das janelas, apesar de vivas, já não tinham as mesmas cores viçosas. O jardim parecia abandonado. Não se sentia mais o perfume das comidas deliciosas que vinha da sua cozinha, nem o som de sua risada franca, conversando com alguém. 

Já fazia quase um mês que essa situação se arrastava. Ele já não conseguia dormir, de tanto que pensava na moça, de tanto que sentia sua falta. Sentia saudade de conversar com ela, de ouvi-la cantando, de passar no final da tarde em sua casa só para provar um doce e lhe dizer 'oi'. Doía-lhe, fisicamente, a falta que ele sentia do jeito meigo com que ela lhe contava as coisas. De seu tom de voz baixinho, lhe dizendo que ele era, sim, uma pessoa sensível - e só nela ele acreditava.

Sentia falta do seu abraço. Do brilho que lhe iluminava os olhos, tão belos, quando eles se encontravam. Das longas conversas que tinham, sem que o assunto acabasse. Percebeu que se sentia absolutamente confortável com ela: os silêncios entre os dois não eram pesados. Era bom ficar ao lado dela.

A realidade lhe atingiu num estalo: estava se apaixonando, e precisava fazer algo para tirá-la da prostração.

Decidiu que a moça precisava de seu próprio remédio, a magia, e que ele usaria a única de que dispunha: a música. Com seu violão, sentou-se ao lado da cama da moça, e se pôs a tocar, enquanto contava a ela pequenas histórias da amizade dos dois. Lembranças de conversas, dos momentos em que riram juntos e até dos silêncios, em que curtiam apenas a presença um do outro.

Demorou, mas finalmente a moça artesã abriu um sorriso. Descorado, sutil, quase imperceptível, mas ainda assim um sorriso, acompanhado do tão conhecido brilho em seus olhos. Durante algumas tardes, o moço foi visitá-la, sempre acompanhado de seu violão. Todos os dias, ele lhe levou margaridas, as flores prediletas da moça. A cada visita, o sorriso se ampliava, o brilho nos olhos aumentava e sua melhora era visível.

Ele não cabia em si de tanto contentamento. E ansiava pelo dia em que poderia abrir seu coração para a moça. Ela, por sua vez, sentia o carinho por ele aumentando no fundo do peito; mas o medo de perder o amigo era grande e o pavor de se machucar, maior ainda.

Para lhe agradecer pelos cuidados, a moça lhe confeccionou uma joia. Era um cordão de prata com dois pingentes: um no formato de uma andorinha minúscula, entalhada em uma pedra azul e outro, também de prata, no formato de uma margarida. Explicou-lhe que as andorinhas são símbolo de fidelidade, do retorno à casa amada e, em diversas culturas, representam o final do inverno e a volta da primavera.

Por sua vez, a margarida era o ícone do carinho que ele tivera com ela. E, também, de sua própria volta à vida. Por isso, tinha idealizado aquela peça, em nome da amizade dos dois, como uma forma de agradecimento por tudo o que ele fizera e pelo tempo que dispendera ali a seu lado. Após prender o cordão no pescoço do moço, desabotoou o primeiro botão de sua blusa e mostrou uma joia gêmea em seu colo.

Disse-lhe que havia feito uma peça para ela com a intenção de mostrar a todos que eram ligados pela amizade e pelo carinho mútuo. Que não havia como agradecer ou retribuir tudo o que ele fizera, e que, a partir daquele momento, ele poderia se considerar liberado para retomar sua vida.

Ela não queria afastá-lo, mas sentia que seu afeto já ultrapassava os limites que ela havia colocado em seu peito para se proteger de um novo desapontamento. Pretendia que ele se afastasse um pouco para que, assim, pudesse manter a sanidade e conseguisse não se envolver com um amigo tão querido. Só que o resultado de sua tentativa foi o oposto: ele perdeu a cabeça ao ouvi-la dizendo que já não precisava dele. 

Momentos antes, ele havia se enternecido pela delicadeza do presente que ela lhe dera. Claro que a joia era um símbolo de amizade, mas no final das contas, o que era amizade senão um amor descompromissado? Entretanto, em alguns segundos, a moça acabou com sua esperança de que a amizade evoluísse, "liberando-o" de estar com ela. Como se fosse possível, ou como se ele quisesse se afastar.

A angústia de perdê-la sufocou-o. Em um momento completamente impensado, ele se declarou. Falou do sentimento que cresceu em seu peito dia a dia, de como ela era importante em sua vida, não somente como mulher, mas como companheira e amiga. Que ela se tornara seu sorriso, o brilho no seu olhar e a inspiração para voltar a acreditar na magia da música.

Que já não podia ficar sem vê-la todos os dias e que ela não estava libertando-o, mas punindo-o. Sem poder se conter, chorou ali, na frente dela. Deu vazão a todo sentimento e toda sensibilidade de que tanto ela falava. Arrasado, deu-lhe as costas e partiu.

"Melhor assim", pensou ela. Que ele se aborrecesse agora, mas com o tempo entenderia que o sentimento que os unia era apenas amizade, e voltaria.

Ele voltaria, disso tinha certeza.

Mas não voltou. Nem no dia seguinte, nem no outro. Nem na semana seguinte. A cada dia que se passava, a falta que ela sentia dele se tornava mais e mais palpável. E machucava, meu Deus, como machucava. Ela queria lhe contar as pequenas coisas sem importância de seu dia, queria lhe mostrar um trabalho concluído. Queria conversar com ele. Queria ficar ao lado dele, em silêncio. Queria seu abraço e seu colo. Queria ver o brilho amoroso de seus olhos castanhos.

Tinha se apaixonado. Mais uma vez. E se desesperou, porque não queria sofrer de novo. Perdeu o sono, o apetite e a vontade de cantar enquanto trabalhava.

Esperou por ele durante dias, e ele não veio. Sua angústia se tornou tão grande que, em uma tarde nublada, decidiu procurar-lhe. Levou um ramo de margaridas e amores-perfeitos, atados com um laço simples, simbolizando suas desculpas.

Mas ele não atendeu à porta, e ela entendeu que o havia machucado além da conta. Infeliz, depositou o buquê na soleira com cuidado; com lágrimas nos olhos, já alcançava o portão quando o ouviu chamá-la.

"Aonde você pensa que vai?"
"Embora. Você não abriu a porta."
"Fui buscar meu violão. Quero mostrar uma coisa pra você."

No meio do quintal, ele tocou uma linda música que tinha escrito pensando nela. Ela não tinha letra, mas a melodia falava de esperança, de dias iluminados, de mãos entrelaçadas. De olho no olho, de confiança no futuro, de carinho. E de amor. De muito amor.

Quando ele terminou, ela já não sentia mais medo. Sabia que os homens que haviam passado por sua vida nada mais foram do que um caminho que a levaram até ele. Tinha certeza de que ele não a magoaria por nada nesse mundo.

Finalmente, as bocas se encontraram. Porque as mentes e os corações já se pertenciam há tempos.

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