Três Marias

Eram três irmãs, já velhinhas.

Maria do Céu, Maria da Paz e Maria das Dores: Maricé, Maricota e Mariinha.

Maricé, a mais velha, sempre foi a filha exemplar. Aprendeu a cozinhar muito bem, limpava a casa como ninguém, costurava, bordava, pintava. Era uma doceira de mão cheia.

Casou aos 19 anos com um jovem major do Exército. Cerimônia na igreja matriz da cidade, festa para 200 convidados no melhor clube, com todos elogiando o "peixão" que ela havia fisgado.

Voltou grávida da lua de mel e teve mais três filhos em escadinha. Todos homens, criados pelo pai à sua imagem e semelhança. As amigas não cansavam de lhe dizer o quanto sua casa era linda, sua família invejável e seu casamento perfeito.

Mas ninguém sabia que o milico bebia e a traía. E que se comprazia em machucá-la. Durante todo o tempo em que estiveram casados, Maricé acumulou hematomas, dores no corpo e muitas, muitas humilhações. Só voltou a respirar aliviada quando ficou viúva.

*

Maricota quase morreu ao nascer. Família numerosa e remediada, sem dinheiro para pagar médico - profissional raro naquelas paragens há 70 anos -, o jeito foi apelar para Nossa Senhora. "Minha santa, se minha filha sobreviver, eu prometo que a consagro pra Senhora" era o terço que a mãe das Marias não parava de rezar enquanto a doença durou.

Promessa atendida, compromisso cumprido: Maricota foi criada como santinha, frequentando missas três vezes por semana, comungando e confessando sempre, ao menor sinal de pecado. Vivia vestida como uma senhora, sem maquiagens, sem decotes, sem bijuterias; compenetrada, não sorria, não dançava, não gargalhava. Em sua cabeça, tudo compunha sua aura intocada, mais que sua fé ou a certeza da vocação, que lhe incutiram desde o berço.

Nada disso impediu que seu coração batesse mais forte por um coroinha da igreja. Foi uma paixão avassaladora, não correspondida, que a consumiu como uma brasa em um palheiro, que a encalorou como vento quente de verão.

Mas o rapaz era comprometido. E carola. Considerou aquele sentimento uma armadilha demoníaca para testar sua fé e, em hipótese nenhuma, cogitou ter algo com a santa. Seu medo do inferno era maior do que qualquer atração que pudesse vir a sentir pela garota. Acuado, tratou de casar e se mudar para bem longe da cidade o mais rápido que conseguiu.

Maricota continuou os estudos para freira no convento, mas nunca foi capaz de pronunciar seus votos. Viveu lá por muitos anos como noviça e, quando a idade já lhe pesava, foi obrigada a deixar a casa, pois a ordem não se responsabilizava por irmãs idosas e laicas.

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Mariinha foi, desde sempre, a ovelha negra e a dor de cabeça constante de seus pais. Nunca aceitou o apelido de "Dasdor", comum por aquelas bandas. Não gostava de serviço doméstico - o que matava seu pai de desgosto, porque, em sua cabeça machista, mulher já tinha que nascer sabendo e gostando de cozinhar, lavar e passar.

Embirrava toda semana, quando sua mãe reunia as carolas em casa para rezar o terço junto com Maricota. Sentava muito rija na cadeira e torcia para que ninguém percebesse que ela não rezava, apenas rolava as contas do rosário pelos dedos, distraída em divagações.

Sempre gostou de roupas diferentes, coloridas, espalhafatosas. Vaidosa, desde pequena gostava de maquiagem, de brincos, pulseiras, colares e sapatos. Quando sabia que não estava sendo vigiada, cantava: não os hinos religiosos insuportáveis de Maricota, muito menos as canções melosas de Maricé. Mariinha gostava de tango e bolero. De músicas que falavam de paixões arrebatadoras e traições espetaculares.

O divisor de águas em sua vida foi uma briga homérica com seu pai, por ter se recusado terminantemente a noivar um colega do marido de Maricé. Ela atirou na cara do pai os roxos dissimulados no corpo da irmã, seu olhar infeliz, a vida vazia que a moça levava e perguntou se era aquilo que ele desejava para mais uma filha.

"Prefiro uma filha que apanhe a uma filha solteira, mal falada e vagabunda, que é o que você está virando."

Aquele 'vagabunda' entrou fundo em sua alma. No mesmo dia, Mariinha arrumou as malas e sumiu. Não regressou à cidade, nem para o enterro dos pais. Só voltou definitivamente quando completou 60 anos e as irmãs, respectivamente recém viúva e recém expulsa do convento, decidiram que morariam juntas.

Mariinha nunca comentou aonde nem como vivera naqueles mais de 40 anos. Na cidade, todos os tipos de fofocas eram espalhados, desde que ela havia se prostituído até que tinha sido dona de bordel e cabaré no Rio de Janeiro - mas ninguém nunca soube a verdade.

*

Maricé e Maricota viveram por mais cinco anos, desde que Mariinha chegou para cuidar delas. Eram amargas, facilmente irritáveis e passavam o dia debruçadas na janela, a criticar qualquer um que não vivesse de acordo com o que consideravam correto. Apontavam, nos outros, defeitos que transbordavam nelas.

Maricé era assustadiça e medrosa. Tinha medo de tudo e exasperava Mariinha a cada noite, a percorrer a casa conferindo todas as trancas e fechaduras, duas, três, dez vezes, até ter certeza de que estavam seguras ali.

Maricota, por sua vez, era amarga e santarrona. Fazia questão de atirar na cara da caçula que a considerava uma devassa, uma libertina, e que só a aceitava na casa (que, por sinal, era de Maricé) por piedade cristã. Ela, apesar de mais nova, morreu primeiro, afogada nas mágoas e desidratada pela falta de amor que nunca teve.

Maricé morreu alguns meses depois, por puro desconsolo. Também nunca tinha conhecido o amor, nem de seu marido, nem de seus filhos. Deu um último suspiro magoado e se foi, em silêncio e infeliz como sempre tinha sido.

*

Mariinha enterrou Maricé ao lado de Maricota. Em uma semana, desfez os armários, doou as roupas, os móveis e tudo o que recheava aquele lar tão infeliz. Entregou as chaves aos sobrinhos, desconhecidos completos, e retornou ao seu lar. Longe, bem longe daquela cidadezinha.

Ela ainda viveu por muitos e longos anos, cercada de lembranças felizes da vida que construiu afastada da família. Sua filha adotiva a encontrou sem vida em uma manhã, deitada na cama e abraçada às almofadas que sua esposa, já falecida, havia bordado. Tinha um meio sorriso no rosto e, a seu lado, um porta-retratos de prata, com uma foto das duas, Mariinha e sua amada, olhando-se profundamente nos olhos e de mãos entrelaçadas.

Viveram uma vida plena, cheia de amor e de carinho. Por ela, só porque ela pediu, ao morrer, Mariinha decidiu retornar à cidade natal e se reconciliar com as irmãs. Por amor, enfrentou cinco anos com as histórias mais escabrosas sobre si. Nada que pudesse a magoar ou ofender, ou que se aproximasse da verdade - pelo simples fato de ter conhecido o amor.

Em sua lápide, a filha fez questão de mandar gravar uma única quadrinha:

Porque teve coragem, pôde viver como quis;
Porque viveu amada, pôde partir feliz.

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