Aquela

Se tens um coração de ferro, bom proveito.
O meu, fizeram-no de carne, e sangra todo dia.
                                              - José Saramago


Sou aquela.
Aquela garotinha quieta, de tranças compridas, grandes olhos e sonhos imensos.
Aquela que não queria aparecer; que sonhava em ser invisível, e procurava distrações pra não atrapalhar os outros. Foi assim que comecei a gostar de ler, sabia?

É engraçado. Um livro nas mãos funciona igual a um escudo. As pessoas fingem não querer incomodar e não se aproximam. Fácil, né?

Sou essa garotinha que mora dentro de mim.
Ela se assusta, e se magoa fácil. Mas os outros parecem não perceber (ou não querem ver) isso.

Eu sou aquela.
Aquela adolescente que cresceu rápido demais. Que, aos 12 anos, tinha altura e corpo de mulher e morria de vergonha de sua aparência.
Que, ao longo dos anos, se cobriu com uma capa de gordura. Se acolchoou dentro de uma armadura onde - teoricamente - nada poderia lhe atingir: que ilusão.

Sou essa adolescente.
Mesmo tendo me escondido durante tantos anos, não há dedos ou mãos que cheguem para contar as vezes em que fui magoada. Porque sabe, comentários como "Seu rosto é tão lindo" e "Não entendo porque você engorda, você nem come tanto assim" não são lisonjeiros ou estimulantes. Eles ferem, muitas vezes mais fundo do que "preguiçosa", "desleixada" e a própria palavra "gorda". Porque saem da boca de gente que amo muito. Gente que deveria ver além dessa aparência externa continua a não ser capaz de me amar, pelo simples fato de eu pesar demais.

Sou aquela.
Aquela jovem mulher que aprendeu a fingir.
Disfarçar que não se importava com a moda. Dissimular a vaidade.
Aquela que aprendeu a ser divertida, espirituosa, que trabalhava mais que os outros, que se esforçava o dobro de todo mundo para aparentar estar bem.

Sou aquela que bate no peito pra dizer "antes só que mal acompanhada", mas chora em filme romântico.

Eu sou aquela que desistiu de um monte de sonhos porque não se achava capaz de realizá-los. Mas que ainda assim descobriu como pendurar um sorriso no rosto, todo dia, dia após dia, a ser simpática e doce, só para dissimular a dor que carrego dentro de mim. Apenas porque não conseguia me imaginar contando-a para alguém.

Eu sou essa mulher.
Sou alguém que tardiamente (muito tardiamente) entendeu que podia se despir da armadura, porque afinal de contas, ela não me protege de nada.
Sou aquela que, igual a um adolescente, se descobriu. Sou alguém que compreendeu que não dá pra ser perfeita o tempo inteiro, e decidiu se perdoar por isso.

Sou essa aquariana enlouquecida, que tenta desesperadamente dominar uma ansiedade sufocante e manter na linha a mente que divaga, como se ainda tivesse 7 anos de idade. Sou o ascendente em leão que, muitas vezes, quer ver o circo se incendiar, mas não tem coragem de riscar o fósforo. Ou melhor: eu acendo, sim, mas me distraio, encantada com a chama.

Sou "essa pessoa muito boa, inspiradora, otimista e excelente escritora". Alguém que "não precisa mudar o seu jeito de ver as coisas" e que "merece ser feliz, seja como for".
Sou alguém que lê essas palavras e não consegue chegar nem perto de expressar o quanto elas me magoaram. Que, mesmo sangrando, perdoa quem as escreveu, porque não me interessa manter uma discussão com alguém assim, tão centrado em si mesmo que camufla a mais dura das verdades em tom de elogio.

Porque sou a amiga. Nunca a amante.
Sou uma ótima pessoa. "Pessoa", não mulher.
Eu mereço ser feliz, seja como for (mas que vai ser esquisito me ver com alguém, ah, isso vai).

Por causa desse pedido de desculpas meio atrapalhado, voltei a ser a menininha insegura.
Procurei por você.
Minha mensagem, meio despropositada numa sexta à noite, era um pedido de ajuda. Eu queria seu colo, baby, mas você não deu.

Subitamente, caí em mim: você também me vê assim, não é?
A inteligente. A que escreve bem.
A divertida. A simpática.

Não serei aquela.
Não serei sua, porque você me transformou em outra: na amiga.

Comentários

  1. acheiiiiiiiii simplesmente lindoooooooo e muito verdadeiro... em certas coisas me identifiquei mas hoje sou bem despojada e curto o momento... me amo do jeito q sou... já comprei vestido lindoooo prá usar qdo emagrecesse... passaram-se anos e doei o vestido...kkkkkkkk parabéns pelo belo texto... quero mais!!!!!

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  2. Dentre tudo, dentre todos, vc escolheu ser doce. Vc escolheu perdoar. Imagine a minha dor, que uso armadura de braveza e não de bravura, de lembrança e não de esquecimento, na ilusão de que se eu me lembrar de tudo, saberei como agir - ou reagir.Essa armadura se incorpora em mim como parte, e talvez sem ela, hoje não saiba ser. Nem melhor, nem pior. A felicidade, amada, não vem dos outros, mas parte de nós. Lidar com a rejeição é difícil pra quem é doce e pra quem é dura. Porque os padrões de beleza foram criados por alguém que vislumbrava um mercado econômico favorável a padrões determinados, e absorvidos por quem se identificava por tais padrões ou por serem manipulados. Já a doçura, flor querida, não precisa de precedentes. Cativa, engloba, incorpora, aproxima, trona-a amada por ser amável não pelo que aparenta, mas pelo que é, por essência. E quem não a tem, não tem nada, nem beleza que perdure.

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