Na terça de Carnaval

Uma colombina era apaixonada por um pierrô.

História quase clichê, não fosse um pequeno detalhe: o pierrô se apaixonou por uma bruxinha.

A colombina, desconsolada, decidiu que ia pular carnaval sozinha. Ajeitou o vestido, retocou a maquiagem, e se mandou para o baile.

Não contava que se encontraria com um arlequim. Sorriso largo, ar cínico, ele tirou a colombina para dançar. Em três compassos, ela já não tinha fôlego. Na metade da música, sua cabeça girava como se estivesse bêbada.

Ao final da música, ele sussurrou em seu ouvido algo que ela não entendeu. Estava completamente zonza e hipnotizada por aquele homem.

Pediu que ele repetisse.

"Vamos beber alguma coisa?", repetiu ele, com a boca colada em seu ouvido e a barba roçando seu pescoço.

Com um arrepio correndo pelo corpo, ela se deixou levar pela mão. Antes do bar, num canto do salão, ele se encostou na parede e a puxou. Mas não a beijou. Confusa, ela se deixou ficar ali, naquele abraço, fitando os olhos castanhos escuros de cílios compridos.

"Desde o começo do Carnaval, eu tenho olhado você. E você só com olhos praquele pierrô idiota." Ela só teve forças para concordar com a cabeça, enquanto ele pegava sua mão e entrelaçava seus dedos com os dela. "E aí, ontem, ele ficou com aquela bruxinha. Como é que ele não te enxergou? Sorte a minha."

Ato contínuo, a outra mão estava em sua nuca. E sua boca na dele.

Num último instante de lucidez antes do beijo, ela descobriu uma pinta do lado direito de sua boca. "Sexy", ela pensou. E se perdeu, bem ali, do lado daquela pinta.

Perdeu a noção do tempo. Perdeu a noção do espaço. Não sabia mais onde estava. Tudo o que ela via eram aqueles olhos lindos. Tudo o que ela ouvia era sua voz rouca, com um traço de sorriso no que dizia, sussurrando em seu ouvido.

Ela só ouviu o último acorde da banda e a algazarra das pessoas saindo do salão. Junto com o Carnaval, o encanto também terminou.

"Nossa, já são cinco da manhã? Preciso ir. Foi um prazer! A gente se fala", disse ele, num jorro, deixando-a com a sensação de que escorria pelo vão de seus dedos e que, claro, tinha feito algo de errado.

Pra piorar, a colombina ainda trombou com o pierrô e sua bruxinha no caminho de casa.

A quarta-feira amanheceu cinza, pesada e triste. A colombina já não usava fantasia, nem maquiagem, nem máscara. Mas o gosto do arlequim ainda estava em sua boca - e a decepção, alojada no fundo do estômago.

Com raiva, jogou a máscara de colombina fora. Não queria guardar lembranças além das que estavam impressas em sua memória.

Alguns dias depois, os amigos conseguiram tirá-la de casa. "Afinal de contas, não posso mofar aqui para sempre", pensou ela. No bar, ela se sentou num canto e, para desencorajar qualquer aproximação, passou a prestar atenção na banda que tocava.

Uma das amigas chamou a atenção para o guitarrista, que não tirava os olhos dela. Algo naquele olhar a intrigou. Prestou mais atenção no rapaz, com a incômoda sensação de que o conhecia. Ao perceber que capturara sua atenção, o guitarrista passou a sorrir e a acenar para ela.

Quando a banda deu um intervalo e as luzes se acenderam, ela enxergou o porquê de seu desconforto.

Ali, bem do lado direito da boca do guitarrista, meio escondida pela barba, estava a pinta que lhe povoava os sonhos desde a terça de Carnaval. Sorriu e acenou de volta.

Comentários

  1. Quero saber as cenas do próximo capítulo!!!! To curtindo, muito bom!!!!

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