* Em homenagem à minha amiga Mari Bella, inspirada em uma história maravilhosamente bem contada por ela.
Eram duas meninas novinhas, recém-chegadas à capital.
Eram muito amigas na sua cidadezinha, sempre estudaram juntas, e juntas alimentaram o sonho de um dia vir para a cidade grande. Esse dia enfim chegou: conseguiram estágio em sua área, estavam superfelizes, já tinham até alugado um apartamento para dividirem.
Nessa fase da vida, tudo parece aventura. Um colchão jogado no chão do apartamento, longe dos pais, numa cidade grande, estava quase no nível de um Indiana Jones ou Missão Impossível (sem o Tom Cruise, claro, aí já ia ser sonho, e não aventura).
A mãe de uma delas, preocupada com a filha solta no mundo, convenceu o marido a comprar um carro usado (seminovo, eles disseram na loja) para que ela não tivesse que se locomover de ônibus na nova cidade.
Mariana e Helena, então, ganharam o mundo. Iam a todos os lugares, paqueravam no trânsito, cantavam ao som das músicas que tocavam no rádio... nunca nem sonharam em tomar algum tipo de precaução no trânsito. Andavam com os vidros abaixados, as portas destravadas, tranquilas como se ainda estivessem em sua cidadezinha e todos as conhecessem. Um belo dia, a ilusão foi por água abaixo.
Estavam retornando para casa, descontraídas como sempre. Lena, a mais comilona, fez Mari parar em uma padaria, pois estava com fome e não ia aguentar até a hora do jantar. Voltou ao carro com uma mega coxinha e uma latinha de refrigerante nas mãos.
"Afe, Lena, não sei pra onde é que vai tanta comida". Mari era toda saudável e passou mal só de sentir o 'perfume' da comida. Mas gostava tanto da amiga e da vida nova, que nem se importou. Não chegaram a andar dois quarteirões quando pararam no semáforo.
Estavam falando do gatinho do escritório. Quer dizer, Mari falava e Lena acenava com a cabeça, porque estava com a boca cheia de coxinha e refri. O papo estava animadíssimo, até que uma criatura enfiou a cabeça pela janela do motorista, entre o rosto de Mari e o volante.
Ele tinha um cheiro fortíssimo de suor, estava meio sujo e já entrou no carro aos berros. Era uma situação tão insólita que as duas, por um momento, ficaram surdas.
"Hello-o... isso deve ser uma pegadinha. Quem é esse SER dentro do meu carro, falando sem parar? Que esse cara tá dizendo?". Mari não acreditava no que estava acontecendo, e ficou esperando o Faustão aparecer gritando que era uma pegadinhaaaaaa. Que nada.
"Suas p*$%s, podem passar logo todo o dinheiro, o celular, relógio, o que tiver de valor AGORA!", gritava o sujeito. Mas as duas continuavam em choque. A Lena não conseguia nem olhar. Estava paralisada, com a coxinha a meio caminho da boca, que estava aberta. Ela continuava olhando para frente, como se o fato de não olhar o ladrão fosse fazê-lo desaparecer.
"Vaaaaaaaaaaiiii logooooooooooo, suas ÉGUA, passa tudo AGORA MESMO, vou dar uns pipoco na cabeça de vocês, não vou esperar mais!!!!"
Mariana percebeu que o cara estava nervoso e não podia mais ficar lá que nem um dois de paus. Abriu a carteira, tirou os dez reais que tinha de lá de dentro e passou para ele.
"Vaaaaaaaaaaaaaaiiii, éguaaaaa, me passa também seu celular!"
"Escuta aqui, moço, você pode ser mais educado, por favor?". O sangue de Mari já estava fervendo e ela não ia admitir que um qualquer a ofendesse dessa maneira. Afinal de contas, ela era uma lady, uma moça fina. Nem pensou naquele volume que aparecia debaixo da camisa do bandido, denunciando uma provável arma.
"Como é que é?". Pela primeira vez, ele não estava gritando. E parecia confuso.
"Ó, moço, eu vou abrir a minha bolsa de novo pra pegar o celular. Vou dar ele pra você e você vai embora beeeem calminho tá? Não queremos mais confusão." Mari tentava acalmar a criatura, para salvar a pele da Lena, porque a coitadinha ainda estava lá paralisada com a coxinha na mão. Ela abriu a bolsa, tirou o celular velho, todo ralado, e pôs nas mãos do ladrão. Se sentia quase uma negociadora de paz, triunfante, certa de que ele se satisfaria com o aparelho e as deixaria em paz.
Por um momento, pareceu que deu certo. Ele arrancou o aparelho das mãos dela e fez menção de tirar o corpo de dentro do carro. Mas aí resolveu olhar melhor o telefone e se enfureceu novamente.
"Aê, mina, cê tá louca??? Tá querendo tomar uns pipoco? Cê acha que isso é assalto? Dé real e um celular ZUADO?? Cê tá é querendo morrer?"
Mari não aguentou mais. Desatou a chorar, pedindo, aliás, pedindo não, implorando que Deus a desintegrasse dali, que ela acordasse em sua cama, que fosse teletransportada pra Lua, qualquer coisa que a tirasse de dentro daquele carro.
Lena foi tirada de seu torpor pelo choro de Mariana e se pôs a chorar também. Murmurava coisas desconexas como "só tô comendo coxinha" e "não tenho um tostão", mas não conseguia se obrigar a olhar o bandido, que pela primeira vez parecia ter visto que havia mais um passageiro no carro.
"E você, sua ÉGUA, cadê seu celular, passa logo, me dá seu dinheiro! Vou te dar uns pipocos! Vou meter uma bala na tua cabeça!"
Lena, aos prantos e soluços, só conseguiu abanar as mãos para indicar que não tinha dinheiro e que a única coisa que tinha eram a coxinha e o refri em suas mãos. Já não tinha mais nem vontade de comê-los, pois o cheiro de suor do sujeito tinha se misturado com o aroma de gordura da guloseima e com o desodorizador do carro, que agora cheirava a ônibus lotado com Glade. Nunca mais aquele fedor ia sair da lembrança de Lena. Disso ela tinha certeza: nunca, nunca mais ia comer coxinha na vida.
Foi então que o bandido se tocou da comida. E um brilho de fome apareceu em seu olhar. Lena continuava balbuciando "só tô comendo minha coxinha" e quase infartou quando ele, em um movimento rápido, com uma única mão (já que a outra estava ocupada com os dez reais e o celular da Mari), arrancou a coxinha e a latinha de refrigerante das mãos dela. Antes de sair do carro, ainda soltou a ofensa final:
"Pô, suas égua, da próxima vez, vê se vem mais preparada, senão não dá pra assaltar direito. Vaza, vaza!"
E saiu tranquilamente pela calçada, feliz e contente com o lanchinho, deixando as duas abraçadas, chorando, dentro do carro que cheirava a Glade num ônibus lotado.
Eram duas meninas novinhas, recém-chegadas à capital.
Eram muito amigas na sua cidadezinha, sempre estudaram juntas, e juntas alimentaram o sonho de um dia vir para a cidade grande. Esse dia enfim chegou: conseguiram estágio em sua área, estavam superfelizes, já tinham até alugado um apartamento para dividirem.
Nessa fase da vida, tudo parece aventura. Um colchão jogado no chão do apartamento, longe dos pais, numa cidade grande, estava quase no nível de um Indiana Jones ou Missão Impossível (sem o Tom Cruise, claro, aí já ia ser sonho, e não aventura).
A mãe de uma delas, preocupada com a filha solta no mundo, convenceu o marido a comprar um carro usado (seminovo, eles disseram na loja) para que ela não tivesse que se locomover de ônibus na nova cidade.
Mariana e Helena, então, ganharam o mundo. Iam a todos os lugares, paqueravam no trânsito, cantavam ao som das músicas que tocavam no rádio... nunca nem sonharam em tomar algum tipo de precaução no trânsito. Andavam com os vidros abaixados, as portas destravadas, tranquilas como se ainda estivessem em sua cidadezinha e todos as conhecessem. Um belo dia, a ilusão foi por água abaixo.
Estavam retornando para casa, descontraídas como sempre. Lena, a mais comilona, fez Mari parar em uma padaria, pois estava com fome e não ia aguentar até a hora do jantar. Voltou ao carro com uma mega coxinha e uma latinha de refrigerante nas mãos.
"Afe, Lena, não sei pra onde é que vai tanta comida". Mari era toda saudável e passou mal só de sentir o 'perfume' da comida. Mas gostava tanto da amiga e da vida nova, que nem se importou. Não chegaram a andar dois quarteirões quando pararam no semáforo.
Estavam falando do gatinho do escritório. Quer dizer, Mari falava e Lena acenava com a cabeça, porque estava com a boca cheia de coxinha e refri. O papo estava animadíssimo, até que uma criatura enfiou a cabeça pela janela do motorista, entre o rosto de Mari e o volante.
Ele tinha um cheiro fortíssimo de suor, estava meio sujo e já entrou no carro aos berros. Era uma situação tão insólita que as duas, por um momento, ficaram surdas.
"Hello-o... isso deve ser uma pegadinha. Quem é esse SER dentro do meu carro, falando sem parar? Que esse cara tá dizendo?". Mari não acreditava no que estava acontecendo, e ficou esperando o Faustão aparecer gritando que era uma pegadinhaaaaaa. Que nada.
"Suas p*$%s, podem passar logo todo o dinheiro, o celular, relógio, o que tiver de valor AGORA!", gritava o sujeito. Mas as duas continuavam em choque. A Lena não conseguia nem olhar. Estava paralisada, com a coxinha a meio caminho da boca, que estava aberta. Ela continuava olhando para frente, como se o fato de não olhar o ladrão fosse fazê-lo desaparecer.
"Vaaaaaaaaaaiiii logooooooooooo, suas ÉGUA, passa tudo AGORA MESMO, vou dar uns pipoco na cabeça de vocês, não vou esperar mais!!!!"
Mariana percebeu que o cara estava nervoso e não podia mais ficar lá que nem um dois de paus. Abriu a carteira, tirou os dez reais que tinha de lá de dentro e passou para ele.
"Vaaaaaaaaaaaaaaiiii, éguaaaaa, me passa também seu celular!"
"Escuta aqui, moço, você pode ser mais educado, por favor?". O sangue de Mari já estava fervendo e ela não ia admitir que um qualquer a ofendesse dessa maneira. Afinal de contas, ela era uma lady, uma moça fina. Nem pensou naquele volume que aparecia debaixo da camisa do bandido, denunciando uma provável arma.
"Como é que é?". Pela primeira vez, ele não estava gritando. E parecia confuso.
"Ó, moço, eu vou abrir a minha bolsa de novo pra pegar o celular. Vou dar ele pra você e você vai embora beeeem calminho tá? Não queremos mais confusão." Mari tentava acalmar a criatura, para salvar a pele da Lena, porque a coitadinha ainda estava lá paralisada com a coxinha na mão. Ela abriu a bolsa, tirou o celular velho, todo ralado, e pôs nas mãos do ladrão. Se sentia quase uma negociadora de paz, triunfante, certa de que ele se satisfaria com o aparelho e as deixaria em paz.
Por um momento, pareceu que deu certo. Ele arrancou o aparelho das mãos dela e fez menção de tirar o corpo de dentro do carro. Mas aí resolveu olhar melhor o telefone e se enfureceu novamente.
"Aê, mina, cê tá louca??? Tá querendo tomar uns pipoco? Cê acha que isso é assalto? Dé real e um celular ZUADO?? Cê tá é querendo morrer?"
Mari não aguentou mais. Desatou a chorar, pedindo, aliás, pedindo não, implorando que Deus a desintegrasse dali, que ela acordasse em sua cama, que fosse teletransportada pra Lua, qualquer coisa que a tirasse de dentro daquele carro.
Lena foi tirada de seu torpor pelo choro de Mariana e se pôs a chorar também. Murmurava coisas desconexas como "só tô comendo coxinha" e "não tenho um tostão", mas não conseguia se obrigar a olhar o bandido, que pela primeira vez parecia ter visto que havia mais um passageiro no carro.
"E você, sua ÉGUA, cadê seu celular, passa logo, me dá seu dinheiro! Vou te dar uns pipocos! Vou meter uma bala na tua cabeça!"
Lena, aos prantos e soluços, só conseguiu abanar as mãos para indicar que não tinha dinheiro e que a única coisa que tinha eram a coxinha e o refri em suas mãos. Já não tinha mais nem vontade de comê-los, pois o cheiro de suor do sujeito tinha se misturado com o aroma de gordura da guloseima e com o desodorizador do carro, que agora cheirava a ônibus lotado com Glade. Nunca mais aquele fedor ia sair da lembrança de Lena. Disso ela tinha certeza: nunca, nunca mais ia comer coxinha na vida.
Foi então que o bandido se tocou da comida. E um brilho de fome apareceu em seu olhar. Lena continuava balbuciando "só tô comendo minha coxinha" e quase infartou quando ele, em um movimento rápido, com uma única mão (já que a outra estava ocupada com os dez reais e o celular da Mari), arrancou a coxinha e a latinha de refrigerante das mãos dela. Antes de sair do carro, ainda soltou a ofensa final:
"Pô, suas égua, da próxima vez, vê se vem mais preparada, senão não dá pra assaltar direito. Vaza, vaza!"
E saiu tranquilamente pela calçada, feliz e contente com o lanchinho, deixando as duas abraçadas, chorando, dentro do carro que cheirava a Glade num ônibus lotado.
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