Another brick in the wall

Um dia, eles contaram um ao outro sobre seus muros.

"A vida toda me escondi das pessoas atrás de um muro", ela contou, abrindo uma frestinha por onde observou com cautela aquele rapaz - ao mesmo tempo tão diferente e tão parecido consigo mesma.

"Ah, disso eu entendo, minha querida. Sempre me escondi também", disse ele, do seu lado da parede, tentando matar sua curiosidade e adivinhá-la através daquele espaço mínimo.

Um dia, cansaram de se olhar por entre seus escudos. Ela buscou uma escada e ele, uma cadeira e um caixote, aonde se equilibrou para conversarem.

Nas alturas, no topo dos muros, puderam se olhar à vontade; suas mãos se tocaram e os sorrisos, largos e brilhantes, se refletiram um no outro. Finalmente ouviram suas vozes sem o filtro de tijolos e de cimento. Finalmente riram juntos sem nenhum escudo.

Ah, finalmente.

Nunca pensei que fosse me sentir tão à vontade com alguém que mal conheço, escreveu a moça em seu diário. Ele também gostava de estar com ela: "Como é bom poder me abrir com alguém que não me julga", pensava.

A cada encontro, suas conversas e risadas faziam os muros ruírem um pouco mais, até que não sobrou nada além uma pilha de escombros, que eles não se importaram de escalar e atravessar para se encontrarem.

Miraram-se por completo. Puderam se abraçar com o corpo todo, não apenas usando os braços. Ela sentiu o toque das mãos frias dele nas costas, sua barba roçando no rosto e seu coração disparou, como o de uma menininha. Um surdo repicando no peito. Alto, tão alto que ela achou que ele iria ouvir.

Subitamente, ela se viu insegura ali, dentro dos abraços do moço, envolvida em suas risadas, consumida por seus olhos profundos: e se ele não gostasse do que via? Se sentiu pequenina. Tantas mulheres mais bem resolvidas que ela no mundo... Mais bonitas, mais interessantes, mais vividas, mais cultas. Mais magras, viajadas, sofisticadas, jovens. De alguma maneira, mais.

E ela, era o quê? Era quem? Somente alguém que se escondera durante anos - durante uma vida - atrás de um muro. Que derrubara suas defesas e, agora, não tinha mais aonde se proteger. Afinal de contas, sem o muro ele pôde saber de seu imenso afeto por ele. Porque, no fundo, lá no fundo, ela sabia que havia mil razões pesando contra si.

Cada uma de suas dúvidas tirava um tijolo da pilha de entulho e o acrescentava novamente à velha parede. Cada lágrima cimentava-o definitivamente ali.

*

Ele, por sua vez, se cobrava tanto em tudo o que fazia... Exigia-se à exaustão, a ponto de um dia não conseguir mais desempenhar as mínimas tarefas sem querer dar o melhor de si, até a última gota, até o último fiapo de espírito livre que restasse dentro dele. Obcecado, sem mais nada para oferecer, perdeu o foco na mulher que estava ali, bem na sua frente, estendendo-lhe os braços e esperando desesperadamente seu carinho.

Sem querer, ele lhe negou o afeto que ela tanto precisava para se sentir mais confiante. Para se refugiar em sua busca incessante pela perfeição, usou a amizade dos dois como desculpa e escudo para evitar se aproximar mais dela. Conscientemente e quase de um jeito cruel, lhe disse 'não'. Inconscientemente, deu-lhe as costas e, assim, também voltou a lentamente erguer seu muro.

As paredes de ambos subiram capengas, tortas e cheias de falhas; por entre elas, a moça conseguia vislumbrar a infelicidade dele, mesmo com o sofrimento causado pela enorme falta que sentia de seu amor, de seu amigo. O oco no peito era tamanho que a dor dela era quase física.

Através de uma fresta, ela ouvia seus suspiros melancólicos, que a faziam ter saudades da risada franca dele. Por um lado ainda não reerguido, o via passando e, com um golpe surdo no coração, enxergava seus olhos, tão bonitos, cheios de tristeza, vazios e sem brilho. Olhos de um homem profundamente infeliz.

Mais do que a insegurança, que a fez reerguer seu muro, e mais do que a imensa falta que sentia dele, o que mais a fazia sofrer era o fato de que ele trancou a porta que ligava o caminho entre eles. Não deixava que ela se aproximasse demais dele, que oferecesse seu carinho e afeto, nem mesmo a amizade que um dia ele próprio pediu a ela.

Desconsolada, a moça tinha de se contentar em saber dele de longe. Seus apelos eram inúteis: recados, conversas, bilhetes, qualquer tentativa de aproximação era prontamente rechaçada. Era como mexer em uma concha, que se fechava ao mínimo toque. Ou com um ouriço, capaz de espetar fundo e doído.

A cada vez que lhe negou passagem, em todas as que lhe fechou a porta, ele só reafirmou tudo o que ela pensava de si. Todas as bobagens, medos infantis e inseguranças tremendas se lhe confirmavam.

Seus braços pendiam vazios; seu olhar, baço dos olhos dele; as mãos não conseguiam tirar a dor do próprio peito - que dirá aliviar as angústias do moço. Estava de coração e alma ausentes, isolada atrás do próprio muro.

Estar próxima a ele demandava-lhe um esforço incomensurável. Tinha de parecer natural, tranquila e feliz. Como? De que jeito posso ficar natural, se nada mais é como era antes? Como posso ficar feliz se sei que ele está sofrendo aqui, a meu lado? Suas lágrimas não paravam de manchar as páginas de seu diário.

Doeu. Mas um dia, esgotada, num acesso de raiva, a moça derrubou de vez sua parede. Chorou durante muito, muito tempo. E tomou a decisão mais difícil.

Ele encontrou o bilhete dela passado através de uma fresta entre os muros. Meio sem paciência, apanhou o papel, já pensando que seria mais um de seus recados, pedindo que ele se abrisse. Descobriu seu erro já no primeiro parágrafo:

Meu amor,

Preciso sair de você para ficar de verdade em mim, e só comigo. Estarei sempre - sempre - à sua disposição, quando e onde você precisar.

Fica bem, tira um pouco este peso enorme que você carrega nos seus ombros (lembra o que eu te escrevi? o mundo é grande demais pra eles). Seja mais leve, seja mais carinhoso com você mesmo...

Sabe aquela suavidade que você me cobrou? Que tal usar consigo? Você merece, muito, se deixar ser feliz. Percebeu o pronome? A chave da felicidade, amor, está nas SUAS mãos. Só nelas. Se permita isso, sem pensar demais no que vai ser amanhã.

Cuida bem de você? Por mim, querido. Eu queria saber que você está se cuidando. E que, de vez em quando, você pense, só pense, que um pedacinho deste cuidado é por mim.

"A minha casa será sempre sua, pode vir" - disse o Chico, e eu acrescento: os meus (a)braços, meus ouvidos, meu sorriso franco, meu olhar amoroso, e meu coração também. Ele, o meu coração, principalmente.

Venha quando e como quiser. Não precisa nem avisar. Só não consigo mais bater na sua porta e ver, vez após vez, você trancá-la para mim. Não consigo, amor. Me perdoa, mas não dá. Eu também mereço cuidar de mim e ser feliz. Venha quando quiser, eu estarei aqui.

Sempre. Sua. Aqui.

Quando, com um aperto no peito, ele terminou o bilhete, e atravessou a porta, procurando sua amiga, só encontrou os restos do muro dela, derrubado mais uma vez por detrás do dele, e os rastros de suas pegadas, já meio apagadas pelo vento.

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