Mais humanidade, menos bom humor

"Tassia, já faz uns dias que eu tô pra te mandar essa mensagem, mas não me senti no direito, quando li sua última postagem do blog e o seu relato sobre o assédio moral que você sofreu". Foi assim que a Evelyn, uma amiga que mora em Casa Branca, no interior de São Paulo, começou uma mensagem no Facebook pra mim.

Antes de começar a contar o que houve, preciso explicar algumas coisas: a primeira é que esse relato tem autorização da Evelyn (e foi lido previamente por ela) para ser divulgado. Como eu disse a ela, o meu jeito de lidar com as coisas é escrevendo: eu escrevo, escrevo, escrevo... Até que o bicho deixa de me botar medo. E também porque acredito que quanto mais falarmos sobre esse assunto do assédio, mais pessoas que sofrem com ele podem ser sentir fortalecidas pra também brigarem por seu espaço.

A Evelyn é uma amiga de muitos anos. De começo, ela era mais chegada à minha irmã, mas como tantas outras pessoas em nossas vidas, também passou a ser minha amiga. Em comum, nossa luta contra o peso e tudo o que vem junto com ela: baixa autoestima, preconceito, pessoas queridas que muitas vezes nos tratavam da maneira mais impiedosa... Toda gorda já ouviu e sentiu isso na carne mais que uma vez na vida.

Já sentiu cotidianamente, às vezes. Não no meu caso... Não conheço a história da vida da Eve o suficiente pra afirmar que com ela não foi assim. Mas sei que houve, mesmo sem perguntar. Todas sabemos.

Na mesma época em que eu comecei a dieta de reeducação alimentar, a Eve começou a praticar esporte. E me deixa parar tudo pra falar do tamanho da admiração que tenho por essa garota. Ela não foi fazer qualquer coisa, não! A bicha se pôs a praticar jiu-jitsu!

Eu não sei se você, que foi magro ou teve um corpo considerado "normal" a vida inteira, tem noção da dimensão desse passo. Você sabe o que é para uma pessoa que, em um simples olhar, é julgada como "desleixada, preguiçosa, comilona", que é alvo de piadas das mais maldosas, mesmo que viva a água e alface, decidir entrar em uma academia? E, mais do que isso, com o objetivo de praticar um esporte de homens e mulheres "sarados"? Foi o que a Evelyn fez. Eu tenho muito orgulho dessa menina. Muito (porque eu, mesmo emagrecendo 30 kg, ainda morro pra fazer uma simples caminhada). Ela emagreceu e chegou até a participar de competições.

Eis que chegamos à mensagem que tanto me comoveu e motivou esse post. 

A primeira coisa que me chamou a atenção foi o fato de ela não se "sentir no direito" de me incomodar, como se o problema dela fosse pequeno perto do que eu passei. Quando eu sofri assédio moral, eu também tinha esse sentimento. Eu pensava "Ah, gente, tantas pessoas com problemas sérios e eu sofrendo 'só' por isso?".

Mas não é "só". Nunca é "só". A gente não tem o direito relativizar a dor alheia - por que deveríamos fazer isso com a nossa?

A Eve vem enfrentando um período em que engordou um pouco; chateada, procurou seu professor da academia para pedir que tentasse ajudá-la, pois a calça do quimono não estava servindo e, sem ela, minha amiga não pode treinar. Sem treino, sem emagrecimento. A calça já era do maior número disponível. Ela saiu da academia com uma promessa de que ele tentaria contornar a situação do uniforme e pressionaria o fabricante por uma modelagem de calça adequada para a Eve.

Alguns dias depois, minha amiga se depara com essa postagem no Facebook de um colega da academia:

Oi???

O que a magoou terrivelmente foi saber que o garoto publicou essa pérola compartilhando um post da academia, e recebeu um agradecimento pela "propaganda" de seu professor - o mesmo que já sabia do problema dela - que era seu amigo pessoal, com quem ela trocava confidências, pra quem ela contava problemas pessoais.

Coloque seus preconceitos de lado, você que chegou até aqui. Coloque-se no lugar da Evelyn e seja completamente honesto com o seu coração: como VOCÊ se sentiria?

O que você faria?

A Eve fez o óbvio: procurou o amigo, o professor, aquele que já sabia da sua angústia nos últimos meses e, nas palavras dela...

"Eu fiquei sem chão. Quando chamei ele pra conversar, fui superclara. Falei algo do tipo 'meu, pra quem é gorda é dificílimo entrar numa academia, a gente acha que todo mundo tá olhando, que todo mundo tá rindo da gente, que todo mundo tá comentando. E aqui eu nunca senti isso. O respeito e o companheirismo sempre falaram mais alto. Agora, justo agora, que o quimono não me serve, eu vejo isso no face?'"

A reação foi a pior possível. Minha amiga ouviu que não tinha bom humor. Ouviu que era amarga. Da pessoa que deveria tê-la acolhido - não como professor, não como o amigo confidente - mas como o ser humano que se espera que reaja com o mínimo de solidariedade. Aquela, sabe, que a gente tem até com os bichinhos largados na rua.

A postagem foi removida. Mas além da acusação de falta de bom humor e amargura (só faltou acusar de não ter um homem que a satisfizesse, não é?), a Evelyn foi excluída do Facebook do professor "amigo", bloqueada no whatsapp e, constrangida, obviamente não consegue mais frequentar a academia, onde se sentia tão feliz e em casa.

Tudo isso em uma cidade pequena onde todos se conhecem e ficam sabendo da vida uns dos outros. E ela ainda não se sentia no "direito" de me incomodar.

Acho triste, muito triste que sempre os casos de preconceito sejam tratados como "falta de bom humor", "exagero". É sempre assim. O mal humorado é o outro. Não dá pra fazer piada nesses tempos politicamente corretos, reclamam. Não. Não dá. Principalmente se isso envolve o sentimento de alguém. A confiança dessa pessoa num amigo. Sua autoestima.

Eu finalizo com outra coisa que a Evelyn me disse, e que partiu meu coração, porque eu mesma já senti isso tantas vezes. Peço que vocês pensem nisso quando tiverem vontade de fazer piada com alguém. Porque, sabe, a gente sempre faz piada com o diferente, com o mais fraco, com quem a gente considera menor. 

"Vai demorar pra cicatrizar. Causou um buraco na minha autoestima, me recolocando na primeira série, quando as pessoas não me escolhiam pra jogar queimada porque eu era gorda, e elas achavam que não ia conseguir correr, voltei a me sentir aquela menininha sozinha, desprotegida e que não sabia se defender, que achava que ninguém nunca ia gostar dela, não importa que outras qualidades ela tivesse. Nada adiantaria, se ela não conseguisse ser menor.
Fazia muito tempo que não me sentia assim. Vai demorar um outro grande tempo pra eu deixar de me sentir assim, de novo."

Eve, você é infinitamente maior e melhor que isso. Tamo junta, amor.

Comentários

  1. Um conselho de uma gorda que emagrece há 60 anos: sai para caminhar 1 hora por dia, desencana de falsos amigos -- patota de academia pode ser cruel, vai saber se o cara não estava interessado só na mensalidade. E não tenha pena de você: isso engorda, e muito. Força na peruca, Eve!

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  2. e desculpe dizer para você não ter pena, mas é isso mesmo, a gente toma tanta cacetada que é difícil não se sentir vítima, pode se sentir, mas só um pouco tá? que coisa essa gente absurda dessa academia, mas... como disse o poeta, eles passarão e um dia você vai olhar para eles e pensar: nossa, que merdinha. hahahahaha

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  3. Nossa, fiquei absolutamente tocada com o acontecido. Sorte desses dois que não me conhecem, pois se conhecessem, eu ia fazer entendê-los que nem o menor quimono do mundo vestiria o cérebro deles, pois ficaria grande. Senhor, o que está acontecendo com as pessoas? É deplorável. Diga à Evelyn que não abale, por pior que seja, para ela continuar firme no propósito dela. Vão falar, vão rir, vão desacreditar, mas a única força que ela precisa, na verdade, é a dela mesma. E os outros vão engolir e vão aprender a respeitá-la. Não deveria ser assim, está tudo errado, mas ela não pode desistir dela mesma e nem sentir vergonha de ser quem ela é. Ela está buscando melhorar, fazer algo bom e ninguém tem o direito de impedi-la!

    Espero que Deus cure o coração dela e que a encha de força, garra e autoestima! <3

    Beijos, Paula

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  4. Chorei muito lendo esse post, pq ninguém sabe o quanto é dificil emagrecer.
    Sofro tudo isso mas de outras formas, e que me machucam da mesma forma.
    Peço aos deuses que nos protejam desse tipo de gente ...
    Força Eve.
    Nós gordinhas somos lindas ... e não vamos nos abalar! Seremos felizes e tudo vai se encaixar ...

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